toda dança começa com
vídeo performance | 2020 
projeto em andamento


Desde que a quarentena começou no estado do Rio de Janeiro, em março de 2020, eu passei a encontrar outras(os) através de uma tela, assim como a maioria das pessoas. Numa dessas ocasiões de marcar uma vídeo-chamada, meus horários e de uma amiga, com quem marcava o encontro, não batiam. Como outros encontros, que por alguma força do universo não se dão, acabamos não encontrando, e essa minha amiga disse “aye, tudo bem, a gente se encontra no movimento”. Um misto de curiosidade, estranheza e dúvida naquela frase estalou dentro de mim, e fiquei pensando nela por um tempo. Devido à ausência do corpo físico do outro, desafios e reajustes em como lidar com essa situação inusitada já vinham se apresentando, mesmo assim essa frase “a gente se encontra no movimento”,  impulsionou um desejo de dedicar mais tempo e atenção no criar, mover e pensar o corpo hoje. Corpo esse que se vê em estado de crise. É na urgência e importância de continuidade, que a proposta de encontrar virtualmente para dançar junta(o) separada(o) surge. Não como uma resposta imediata e positiva à lógica de produção do sistema vigente, mas como uma resposta a esse desejo de investigar e refletir como se dá a criação com o corpo no contexto atual de pandemia. 

Em maio propus à Eleonora Artysenk, Mana Lobato e Lara Fuke esses encontros que se davam em quatro etapas; 1)encontrar por vídeo-chamada com mais uma pessoa e conversar livremente, 2)levantar uma pergunta juntas(os) à partir do diálogo, 3)desligar a vídeo-chamada e mover no mesmo horário tendo a pergunta como ponto de partida e 4)registrar a experiência através da escrita logo em seguida de mover. A pergunta como o ponto de partida, como um buraco de possibilidades. Durante os encontros inúmeras perguntas surgiam, assim como angústias, afetos, memórias, e não só a pergunta reverberava no movimento mas resquícios da conversa e de saudade de estar junte, num estúdio, numa performance, num ensaio, numa aula, numa festa, na rua. Desses encontros, o vídeo abaixo foi realizado. 






Foi preciso ativar a imaginação e fazer um pacto de mergulhar em espaços invisíveis no mesmo horário a cada encontro, performar em espaços diferentes a mesma performance, e confiar. Tem um trecho de um texto da Linn da Quebrada em que ela escreve: “nada parece que faz muito sentido e ainda assim tudo me faz sentir muito. não sou pessimista. muito menos realista. sou ficcionista: invento verdades”. Essa sensação de inventar verdades vire e mexe me atravessa e me sacode na experiência corporal, o que para alguns pode parecer mitologia, misticismo ou simplesmente impossível, acredito que seja um corpo oráculo e filósofo se manifestando.

Como estar junta(o) separada(o)? Como dançar conectadas(os) por outros planos que não só o virtual? Temos experimentado novas formas de estar juntas(os) agora, e eu pelo menos sinto que é possível, nesse lugar virtual e tão surreal, encontros potentes. Mas então, se temos a capacidade de criar conexões virtualmente, será que não somos capazes de abrir portais que nos conectem por outros lugares também? Imaginar seria o primeiro passo para mudar? Como coloca Eliane Brum em recente artigo: “Imaginar é ação política. Imaginar é instrumento de resistência. Imaginar o futuro já é começar a criar o presente... Nós queremos impedir que rearranjem o anormal. E queremos fazer isso pelo caminho mais radical, o da imaginação. Pelo resgate da possibilidade de voltar a imaginar outros mundos possíveis. Isolamento físico, sim. Isolamento social, jamais”.





Proponho com esses encontros provocar a mim e outras(os) o não abandono do nosso corpo, que possamos mergulhar na potência desse instrumento que nos permite tanto, mas que agora parece se comprimir. Se comprime não só pelo fato de estarmos nos desdobrando nas nossas casas, para quem tem casa, mas por conta também de um desgoverno irresponsável que nos adoece física e mentalmente.

Tudo hoje tem passado pelo corpo, como diz Marcelo Evelin, coreógrafo e perfomer, em conversa: “O que tem acontecido hoje em dia tem acontecido com o corpo. É o corpo que está sendo contagiado, é o corpo que está morrendo, é o corpo que está com medo de outro corpo...”. Agora mais do que nunca, há necessidade de alargar espaços internos e criar espaços com outres. É nesse espaço corporal que tenho encontrado força e paz. Acredito que estar com outras(os) artistas interessadas(os) na mudança, no imaginar novas realidades, possa ser um começo para transformar como vivemos e nos relacionamos nesse planeta.

Parece que a noção do tempo agora é outra, um tempo estendido, que muito mais tem a ver com a criação do que com a exibição ou produção. É importante também identificar quem tem esse tempo e quem tem acesso à esse mundo virtual. Será que com a expansão do mundo virtual para todas as nossas atividades não se expande também um abismo social já anunciado há anos? A pandemia parece ter sido um acelerador do futuro em muitas esferas. Como podemos pensar ações não só pro agora mas que tenham continuidade num mundo pós-pandemia?



Os encontros continuaram a acontecer e já foram feitos com Mana Lobato, Lara Fuke, Eleonora Artysenk, Amarcel Mara, Herika Reis, Maria Luiza Tiburi e Isadora Franco.

Mover o corpo é um gesto político e o cuidado de si é revolucionário. Como em tantos outros momentos em que o corpo em estado de crise se revoltou, se transformou, se moveu, o ano de 2020 no Brasil pede esse movimento interno e externo novamente.